Sola scriptura ou Nuda scriptura?

Derek Kempa
10 min readJan 15, 2023

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Talvez você seja protestante e já tenha ouvido falar no termo “sola scriptura”.[1] Afinal, esse é um dos quatro solas da reforma. Mas, você já ouviu falar sobre “nuda scriptura”? Pois é… O “nuda scriptura” é um tipo de “sola scriptura”, porém “piorado” e perigoso. E ele é como um vírus silencioso que vive no meio dos evangélicos (até mesmo dos reformados!), pronto para contaminar a qualquer um que esteja à vista.

Sola Scriptura

Apesar de Lutero nunca ter resumido seus pensamentos em cinco solas[2] (isso foi fruto de teologia posterior), conhecemos como “sola scriptura” um dos princípios que estão presente na reforma luterana, assim como nas reformas suiças (sim, houve mais de uma “reforma”, mas isso é tema para outro artigo). Os reformadores lutavam contra a ideia de “tradição” presente na teologia católica medieval (uma teologia, digamos, confusa na época). Para os medievais, a “tradição” era um tipo de revelação conjunta e adicional à bíblia. No que a bíblia se calava, a tradição podia ir além para complementá-la. Teoricamente, não seria possível haver contradição entre “tradição” e bíblia, mas sabemos que nem sempre era assim.

Mas, quais eram as fontes dessa “tradição”? Duas principais: concílios e “tradição oral”. [3][4, nota importante]

Os concílios eram reuniões convocado pela Igreja que, geralmente, faziam-se necessários devido a heresias novas e necessidades de se refinar pontos doutrinários e deixá-los claros e explícitos. Por exemplo, o concílio de Niceia debateu sobre a divindade de Cristo. Sim, os cristãos JÁ acreditavam ANTES do concílio de Niceia, convocado pelo imperador Constantino, que Jesus era Deus (diferente do que os testemunhas de Jeová adoram propagar). Porém, o ensino do presbítero Ário de que Jesus era um grandioso ser criado (portanto, não eterno e não Deus) ganhou certa força e precisava ser reprimido com (1) uma condenação direta e institucional e (2) a doutrina de como Cristo é Deus precisava ser melhor desenvolvida (nesse caso surgiram termos como “união hipostática”). Nenhuma doutrina “nova” foi criada, mas somente reafirmada e refinada. Em algum período do tempo os concílios começaram a desenvolver novas doutrinas, não pregadas anteriormente (e a esses concílios os reformadores não subscreviam — não concordavam).

Já a “tradição oral” pode ter muitos significados. Pode significar um “consenso” que a Igreja Primitiva tinha sobre determinado assunto.[5] Ora, a Igreja Primitiva era nada mais que a igreja pós-apostólica (ou seja, essas pessoas foram discípulas dos próprios apóstolos) e por serem privilegiadas cronologicamente (por viverem com os apóstolos antes deles partirem) tinham ouvido as doutrinas deles e, inclusive, doutrinas que não foram escritas. Por essas doutrinas que a Igreja Católica Romana tentava encontrar. “Tradição oral” poderia significar também uma corrente de pensamento que tomou força ao longo do tempo, mas que tivesse origem antiga suposta. E, por último, a “tradição oral” podia significar a interpretação que historicamente a maior parte da Igreja de Cristo deu a uma passagem [6](ou pelo menos, o que os católicos romanos queriam fazer entender que fosse uma interpretação histórica).

Os católicos romanos viam essas fontes com o mesmo pé de força doutrinária e de prática que a bíblia. A elas, devia-se o mesmo respeito e reverência que a bíblia. O que os reformadores fizeram foi negar que elas tivessem o mesmo poder sobre o crente que as Palavras das Escrituras. Mas, atente às palavras…

Nuda Scriptura

O Nuda Scriptura (ou biblicismo) pode soar como um conceito igual ao Sola Scriptura, mas não é. O biblicismo afirma que a bíblia deve ser lida por ela mesma, não necessitando de nada além dela. Parece bonito, né? Agora, com a reforma protestante, os crentes se libertaram do poder da tradição e se voltaram a ver a bíblia puramente! Será? Bom, qualquer um que já leu algum reformador vai ter o seguinte espanto: seus livros são recheados de citações dos Pais da Igreja ou teólogos importantes. Seja Agostinho, Jerônimo, Tertuliano ou Atanásio. Sempre que podiam, os reformadores citavam alguma figura de peso. Mas, por que faziam isso se eles se libertaram do peso da tradição?

Não confunda galhos com bugalhos

A resposta simples para a pergunta acima é: os reformadores citavam teólogos da Igreja por que não ignoravam a história e ela tinha muito a ensinar em como entender e interpretar a bíblia e a como fazer sistemas teológicos coerentes e bíblicos. Vou dar um exemplo.

Pense na Trindade (Deus é uma única substância subsistindo em três pessoas — Pai, Filho e Espírito Santo). “Trindade” não é um termo bíblico e não está na bíblia. Nem o termo “pessoa” está. Porém, ao longo do tempo na história da teologia, foi-se formando a teologia da Trindade (criando termos, como “pessoa”, para conceitos bíblicos que já estavam lá). O termo, substância ou trindade não tem origem especificamente na bíblia, mas são termos muito úteis (e provavelmente os melhores) que temos para descrever sobre afirmações que estão na bíblia. Foi necessário muito pensamento e debate para se chegar a essas conclusões. Sim, a Igreja sempre creu que Pai, Filho e Espírito Santo são Deus. E que há um Deus. Mas, como juntas essas afirmações num todo coerente? Em outras palavras, como fazer um sistema teológico disso tudo? Aí que entra a teologia da trindade, que é fruto de um processo histórico, mas (e isso é importante) com embasamento bíblico. Podemos entender assim: a bíblia nos dá a informação e a teologia tenta fazer sentindo com toda essa informação. O primeiro todo cristão tem acesso com uma leitura da bíblia, mas o segundo exige pensamento e reflexão que, apesar de serem baseados na bíblia, vão além dela. Podemos resumir, então, a importância da teologia a partir de um desenvolvimento da igreja em dois pontos: (1) ela leva os dados bíblicos a um todo coerente, não disponível prontamente a uma simples leitura bíblica (2) ela nos ajuda a responder objeções teológicas e ver os perigos que podem surgir a partir de uma formulação (as vezes com algumas palavras diferentes) de uma doutrina (no caso da trindade, vemos como ela se diferencia do modalismo, do arianismo, triteísmo…). A história nos dá exemplos de tentativas e erros de formulação doutrinária, que, se aprendermos, não vamos repetir.

Agora te convido a pensar sobre a Igreja Primitiva. Eles viveram próximos aos apóstolos. Aprenderam com eles. Comiam com eles. Andavam com eles. Foram discípulos deles. Devemos, então, olhar com muito cuidado como eles interpretam um texto apostólico, por exemplo. Isso pode (com maior ou menor grau de certeza, ver a frente) ter origem apostólica. Melhor ainda é quando vemos que todos ou muitos Pais concordavam com uma interpretação (ou até mesmo com uma teologia). Isso mostra que provavelmente a doutrina tinha amparo apostólico. No mínimo, mostra como pessoas que viviam na mesma cultura e época dos apóstolos interpretavam o texto (o que tem considerável peso).

Agora, aplicando a nosso contexto: os reformadores não viam os concílios e os teólogos antigos como inspirados, mas sim viam neles um alto valor para o desenvolvimento teológico. A igreja católica canoniza os concílios; os reformadores, apesar de aceitar os chamados “concílios ecumênicos” o viam como fonte de sabedoria, teologia e interpretação correta (até onde esses dados não se chocassem com as Escrituras). Por outro lado, o biblicismo vira a mesa: diz que o aprendizado teológico histórico de tentiva e erro, as construções teológicas históricas feitas com muito suor e estudo e a proximidade histórica (ou/e a concordância de teólogos patrísticos) não valem de nada: o que vale é a MINHA leitura da bíblia hoje. Com isso, ignora-se toda a sabedoria teológica da história, todas as formulações que nos ajudam a não cair em heresias (formulações essas que, por poucas palavras diferentes poderiam nos levar ao erro — como levaram muitas pessoas aos quais elas estavam rebatendo doutrinariamente). Grande teólogos do passado são esquecidos. O que importa é o eu e agora.

Não é de se surpreender que as seitas geralmente são altamente biblicistas. Testemunhas de Jeová negam o concílio de Niceia. Para os adventistas, os cristãos no NT guardavam o sábado. E assim por diante… a história é ignorada, e os frutos disso são claramente visto.

Porém, infelizmente, no meio evangélico e reformado tendências como essas também são vistas. Não que não aceitem a trindade ou o concílio de Niceia (embora muitos nem saibam o que foi esse concílio, mas aceitam suas conclusões). Há uma negativa em aceitar, por exemplo, confissões protestantes históricas, como a de Augsburgo, Westminster, Londres, Belga. Mais do que isso: há pouco ou nenhum interesse em estudar os Pais da Igreja, por exemplo. Não interessa se eles tinham uma opinião quase unânime sobre um assunto, o que importa é que a minha interpretação criada há um século (ou menos) atrás está correta! Não estou dizendo que devemos aceitar, sem ressalvas TODA uma confissão de fé ou que se um Pai disse alguma coisa devemos seguir como ovelhas. Não. O que estou dizendo é: se TODAS as confissões dizem uma coisa, então devemos dar bons ouvidos a essa coisas. Se um ou mais Pais (principalmente nesse último caso) dizem a mesma coisa, devemos dar um grande ouvido para eles. Não são inspirado nem inerantes, mas são importantes e tem certa autoridade. E isso não só para termos a teologia correta, mas também para não cairmos na errada por simples confusão de palavras.

As vezes, é difícil diferenciar o correto do errado sem aceitar os dois. Termos diferentes podem ser ensinados como sendo a mesma coisa, por exemplo. Esse é o caso dos reformadores. Santificação e justificação eram ensinadas e vistas como a mesma coisa até que eles vissem que eram coisas diferentes. Seria difícil a partir de uma leitura bíblica simples, sem pano de fundo teológico nenhum, ter esse insight. Ele é bíblico, mas faz parte de uma teologia acima de tudo.

Por isso, é perigoso uma igreja não estar inserida dentro de uma tradição teológica, nem subscrever (pelo menos de maneira geral) a uma confissão histórica.

Notas:

[1] Recebi algumas sugestões do meu amigo, e grande conhecedor da história da reforma, Fabio Bighetti. Vou colocar aqui suas sugestões junto com alguns comentários. Aproveito para agredecer pelos apontamentos . Embora sejam ótimos apontamentos, eles não alteram a tese central do artigo que é a deficiência do nuda scriptura.

[2] Aqui veio o primeiro comentário: “Solus Christus” e “Soli Deo Gloria” não existem, na Reforma. Primeiro porque ninguém consegue definir direito o que é “Solus Christus”, cada autor moderno inventa um sentido próprio para o termo. Segundo que “Soli Deo Gloria” era só uma frase que Bach incluía no final das partituras de suas composições sinfônicas.” E continua: “Tanto que você vai ver gente dizendo que “Solus Christus” é contra o culto aos santos, daí outros vão dizer que isso, na verdade, é o “Soli Deo Gloria”… E, realmente, se isso for “Solus Christus”, o “Soli Deo Gloria” ficaria vazio de qualquer significado, etc.” E finalizando com: “Ambas estas duas “Solas” são adições posteriores, sendo uma delas nada relacionada à Reforma em si, só uma frase popular de um compositor clássico e a outra sem qualquer definição fixa”. No texto fui pelo o que é comumente entendido como “cinco” solas. Por exemplo, o historiador Matthew Barret editou uma série de livros chamada “The Five Solas Series”, que contém, obviamente, o “solus christus” e o “Soli Deo Gloria”

[3] Temos aqui outro comentário: “Eu não diria que o conceito de “Tradição” no catolicismo medieval e tridentino inclua os concílios sob o termo. Na própria redação do Concílio de Trente, “tradições” são apenas o compêndio de doutrinas acerca da fé e da moral que foram ensinadas oralmente por Cristo ou por seus apóstolos e foram preservadas na Igreja. Este “corpus” é a Tradição, e os concílios são apenas a reunião formal dos bispos para reafirmar este corpus.” Basicamente, a ideia é que a tradição geraria os concílios. Os concílios seriam nada além do que reafirmações da tradição já existente. Bom, resolvi manter a diferenciação que fiz acima por uma causa didática e polêmica desse artigo em específico. Se alguém afirma que o concílio é causado pela tradição, então, de uma forma ou de outra, o concílio faz parte da ‘tradição’ também. Além disso, essa diferenciação vai ser importante pelo fato de que depois, vou afirmar que os reformadores mantiveram alguns concílio enquanto rejeitaram a tradição oral (ver corpo do texto).

[4] IMPORTANTE: Como defendido por Alister McGrath (em O Pensamento da Reforma), os conceitos sobre a fé na época medieval e antes do concílio de Trento eram confusas. Na verdade, muitas vezes a prática comum era bem diferente da “institucional”. Então, para falarmos sobre o catolicismo antes de Trento e no tempo dos reformadores, vamos acabar tendo termos confusos e não muito claros, invariavelmente.

[5] Outro comentário: “Isso aqui também não está totalmente correto. A Imaculada Conceição e a Assunção de Maria não foram nunca unânimes dentro da Igreja e o Concílio Vaticano I o reconhece, mas afirma que é parte do depósito da fé da Tradição ainda assim. Então mesmo a Tradição conteria coisas que não foram consenso na Igreja, inclusive coisas disputadas como a Imaculada Conceição.” Na conversa com o Fábio, apontei o fato de que o concílio de Trento afirma diversas vezes coisas como: “conforme o antigo e aprovado costume da Igreja” ou “segundo a doutrina da Sagrada Escritura e da antiga tradição dos Padres” ou “O sacrossanto Concílio Ecumênico e Geral de Trento— posto que não sem especial assistência e direção do Espírito Santo se reuniu para expor a verdadeira e antiga doutrina sobre a fé e os sacramentos”. Várias vezes, o que é afirmado pelo concílio tem como base os antigos Padres (os pais apostólicos). Por isso que usei esse sentido aqui, pois era o mais próximo daquele aceito pelos medievais. Como dito acima, os conceitos, até o concílio de Trento também eram mais flexíveis. Com isso ele concorda: “Mas aí nós vemos uma clara contradição entre Trento e o Vaticano I, assim como entre o Vaticano I e a regra vicentina.” Ou seja, antes parecia que tradição envolvia ser um pensamento antigo, mas recentemente essa visão teria mudado.

[6] “Isso aqui também não está compreendido no conceito de “Tradição”, porque o Concílio de Trento considera como tal apenas aquilo que foi ditado por Cristo ou pelos apóstolos, e a Igreja apenas preserva este depósito por sucessão, não contribuindo ativamente a ele.” Correto, porém no texto me refiro às crenças pré-Trento que eram um pouco mais flexíveis. Dessa forma, foi usado contra Galileu, por exemplo, a história da interpretação de diversos textos da bíblia, que supostamente afirmavam que a terra era o centro (sim, a história da interpretação de alguns textos são de concordância com o geocentrismo. Por isso que acho perigo aceitar a bíblia como livro científico e também o concordismo — mas isso é tema para outra hora). Para Bellarmino, Galileu e outros isso era a tradição. Ver mais no livro Galileu — Pelo copernicanismo e pela Igreja de Annibale Fantoli. Embora, como apontado pelo Fábio esses documentos não são oficiais, eles refletem a visão da época de Galileu sobre “tradição”, antes do termo ser refinado pelos concílios subsequentes

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Derek Kempa

Não sou nada mais que um pecador, buscando ter comunhão com o Deus vivo. Oh! Quanta misericórdia e graça de Deus!