Por que criacionistas usam dois pesos duas medidas?

Derek Kempa
7 min readFeb 23, 2023

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Sim, o título é acusatório. E sim, tenho provas do que estou falando. Não quero parecer nem ser arrogante, muito menos levantar acusações acima das evidências, mas nesse caso acredito que tenho razão. O leitor que me julgue. Mas o fato é que os criacionistas julgam os evolucionistas teístas (ou criacionistas evolucionários) com dois pesos e duas medidas. Vou usar para ilustrar a conhecida (e bem escrita e, talvez, a mais didádica de todas) teologia sitemática de Wayne Grudem, um texto que não chega a ser criacionista da terra jovem — ele admite a possibilidade de um período maior do que de 7 dias, furos nas genealogias, mas é insistente em seu anti-evolucionismo.

O capítulo 16 da teologia sistemática do Grudem tem o seguinte título e subtítulo: “A Providência Divina: Se Deus controla todas as coisas, será que nossos atos podem ter significados reais? Quais são os decretos de Deus?” Na nossa análise, os decretos de Deus não precisam ser discutidos. Mas, a primeira pergunta — ou seja “Se Deus controla todas as coisas, será que nossos atos podem ter significados reais?” — tem importância. Em seu capítulo, Deus define a providência divina como:

Deus está continuamente envolvido com todas as coisas criadas de forma tal que (1) as preserva como elementos existentes, que conservam as propriedades com que ele os criou; (2) coopera com as coisas criadas em cada ato, dirigindo as suas propriedades características a fim de fazê-las agir como agem; e (3) as orienta no cumprimento dos seus propósitos

A segunda parte da definição em negrito é o que nos interessa aqui, cujo nome dado por Grudem é cooperação. Sobre isso, ele divide a doutrina em sete partes: 1. a criação inanimada; 2. Os animais; 3. Acontecimentos aparentemente “aleatório” ou “casuais”; 4. Eventos totalmente provocados por Deus e totalmente provocados também pelas criaturas; 5. As questões nacionais; 6. Todos os aspectos da nossa vida.; 7. O mal.

Façamos uma pausa aqui. Voltemos algumas páginas, para o capítulo 15: “A criação” e vejamos o que Wayne Grudem diz sobre a teoria da evolução e por que não devemos aceitá-la.

Essa teoria se chama evolução teísta porque advoga a crença em Deus (é “teísta”) e também na evolução. Muitos dos que defendem a evolução teísta sugerem que Deus interveio no processo em alguns pontos críticos, geralmente: (1) na criação da matéria no princípio, (2) na criação da forma mais simples de vida e (3) na criação do homem. Mas, com a possível exceção desses momentos de intervenção, os evolucionistas teístas sustentam que a evolução se deu segundo os processos já descobertos pelos cientistas naturais, e que foi esse o processo que Deus resolveu usar no desenvolvimento de todas as outras formas de vida na terra. Acreditam eles que a mutação aleatória das coisas vivas conduziu ao desenvolvimento de formas superiores de vida — aqueles que tinham uma “vantagem adaptadora” (mutação que lhes possibilitasse se adaptar melhor à sobrevivência no seu ambiente) viviam, mas os outros morriam.

Depois de colocar alguns argumentos contra a evolução teísta, ele chega no quarto que afirma:

É difícil conciliar o atual papel ativo de Deus na criação ou formação de todo ser vivo que surge hoje com o tipo de supervisão remota e não intervencionista proposta pela evolução teísta. Davi confessa: “Tu formaste o meu interior, tu me teceste no seio de minha mãe” (Sl 139.13).

E finaliza:

Se Deus está tão envolvido na causação do crescimento e do desenvolvimento de cada passo de todo ser vivo agora mesmo, acaso parece coerente com as Escrituras dizer que essas formas de vida foram originariamente geradas por um processo evolutivo dirigido pela mutação aleatória, e não pela criação direta e deliberada de Deus, e que só depois de tê-las criado é que ele passou a envolver-se ativamente na direção de cada momento delas?

O argumento basicamente é esse: o Deus da evolução teísta é um Deus distante, pois usa mutações aletórias (segundo Grudem) como mecanismo evolutivo e nunca intervém. Dessa forma, podemos eliminar a evolução teísta como demais não-intervencionista. Então, parece que para Grudem o fato de algumas coisas parecerem aleatórias indica que Deus está longe, e portanto, esse conceito está fora da visão bíblia de Deus. Com essas bases, a evolução teísta é dispensada. Mas, aqui encontramos o nosso “dois pesos e duas medidas” — podem haver mais respostas para esse “problema”, mas o ponto aqui é somente mostrar as diferenças de julgamento.

Se voltarmos ao capítulo da “Providência Divina”, mais especificamente na parte sobre cooperação, veremos que a contestação de Grudem a evolução teísta não se sustenta em seus próprios termos. Defini-se cooperação assim:

Deus coopera com as coisas criadas em cada ato, dirigindo as suas propriedades características a fim de fazê-las agir como agem.

Ora, se Deus “coopera com as coisas criadas”, então por que não poderia ter cooperado com a mutações “aleatórias”? Para piorar, o ítem 3 dentro da cooperação, fala sobre “3. Acontecimentos aparentemente “aleatórios” ou ‘casuais’.”

De um ponto de vista humano, o ato de lançar sortes (ou seu equivalente moderno, jogar dados ou tirar cara ou coroa) é o mais típico dos eventos aleatórios que ocorrem no universo. Mas a Bíblia afirma que o resultado desse evento provém de Deus: “A sorte se lança no regaço, mas do Senhor procede toda decisão” (Pv 16.33).

Amém! Apesar de parecer “aleatório”, o ato de jogar sortes é guiado por Deus também! Mas, por que então as mutações serem “aleatórias” implica que a evolução teísta não deve ser aceita? Seria isso “dois pesos e duas medidas”? Vamos dar uma colher de chá para algum defensor criacionista. Acredito que aqui a contradição já ficou latente, mas imagine que o criacionista afirme: “Ah, mas jogar dados é um ato pequeno e temporário e não uma evolução que durou milhões de anos”. Dois problemões aqui.

Primeiro, (aqui sou eu falando e não o Grudem, embora acredite que as falas do Grudem corroborem com a minha) se Deus faz uma “exceção” (um evento aleatório ‘pequeno’), por que Ele não poderia fazer uma exceção maior? Quem é o ser humano para que coloque limites em Deus? Sabemos, e todos concordamos, que Deus não perdará o controle, seja num evento “aletório” de um segundo, mil anos, dez mil anos ou mais, então qual é o problema? (Tudo isso, além do fato que ninguém sabe se Deus interviu mais diretamente no processo evolutivo antes dos seres humanos aparecerem, afirmar que nao seria pura especulação — e especulacao baseada num argumento circular para deixar o argumento em pé)

Segundo, a evolução por seleção natural (que age sobre as mutações aleatórias) é um evento natural. Sim, até criacionistas aceitam que hoje existem as mutações aletórias e a seleção natural. O problema (suposto) seria o grau em que isso pode chegar. Dessa forma, a evolução não seria nada diferente da chuva, neve ou outro evento natural. Mas, veja o que Grudem fala desses casos:

Há muitas coisas na criação que concebemos como ocorrências meramente “naturais”. Contudo, as Escrituras afirmam que Deus as faz acontecer.

Ele cita Jó 37:6–13, por exemplo:

Ele diz à neve. Cai sobre a terra;

e à chuva e ao aguaceiro: Sede fortes.

[…] Pelo sopro de Deus se dá a geada, e as largas águas se congelam.

Também de umidade carrega as densas nuvens, nuvens que espargem os relâmpagos.

Então, elas, segundo o rumo que ele dá, se espalham para uma e outra direção, para fazerem tudo o que lhes ordena sobre a redondeza da terra.

E tudo isso faz ele vir para disciplina, se convém à terra, ou para exercer a sua misericórdia

Amém para tudo isso! Apesar de sabermos fisicamente como a chuva se forma, a neve cai ou os relampâgos aparecem, ainda assim Deus tem controle sobre eles. Apesar desses eventos poderem até ser “previstos” humanamente falando! Se é Deus que está por detrás de eventos naturais, qual é a contradição dele controlar mutações? A resposta é simples: não existe.

A afirmação de que o conhecimento de processos naturais retira a agência de Deus sobre o mundo é falsa. O mesmo ocorre com a teoria da evolução. Não, a teoria da evolução não implica em um Deus distante.[1]

Esse é o “dois pesos, duas medidas” criacionista.[2]

[1]. Grudem tinha afirmado: “É difícil conciliar o atual papel ativo de Deus na criação”. Mas, que atual papel ativo é esse? Ele cita como exemplos: o nascimento, as doenças humanas, alimento das aves e outras criaturas. Ora, é muito fácil aqui perceber a contradição. TODOS esses eventos podem ser previstos ou/e estudados naturalmente. Sem exceção. O que se pode fazer com a evolução? Isso mesmo, estudá-la naturalmente! Simplesmente, os dois tipos de coisas estão na mesma categoria! Não tem contradição nenhuma aqui. De fato, esse argumento criacionismo é um dos mais fracos que existem.

[2]. O Interessante é que os ateus usam exatamente o mesmo tipo de argumento contra Deus o qual os criacionistas usam contra o evolucionista teísta. Eles dizem (ateus do tipo Richard Dawkins e Cia): tudo o que vemos pode ser estudado e explicado pela ciência, portanto, o Deus cristão intervencionista é inútil. E o que os criacionistas falam? Se a evolução existe e seu método natural pode ser estudado, então o Deus cristão intervencionista é inútil. Se os criacionistas vão usar esse argumento contra evolucionistas teístas, precisam primeiro responder aos ateus. Mas, duvido que a reposta aos ateus sejam tal que (1) responda a objeção dos ateus e (2) não dê espaço nenhum para a evolução teísta.

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Derek Kempa

Não sou nada mais que um pecador, buscando ter comunhão com o Deus vivo. Oh! Quanta misericórdia e graça de Deus!