Cristianismo e psicoterapia

Derek Kempa
9 min readDec 20, 2022

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Um assunto que hora ou outra aparece em discussão na comunidade cristã é a relação entre psicologia — já vamos falar desse termo — e cristianismo. Seriam eles inimigos mortais? Amigos íntimos? Ou será necessária uma amizade crítica? Com isso em mente, resolvi escrever esse “artigo”. Por que as aspas? Por que esse texto não tem o objetivo de ser exaustivo -cobrir todo o assunto-, que é muito amplo, nem de ser acadêmico -não fiz uma pesquisa gigantesca para escrever sobre isso-, mas simplesmente de responder algumas críticas mais comuns que aparecem à psicologia no meio cristão.

EM PRIMEIRO LUGAR, e mais importante: sim, o pecado pode ter, e normalmente tem, efeito emocional sobre nossas vidas (somos uma unidade, não é mesmo?). Tanto o pecado quanto o arrependimento dele tem efeitos psicológicos. E SIM, Cristo salva, inclusive pode nos salvar de nossas emoções. Apesar dEle poder também nos salvar de nossas doenças corporais , esse não é o modo natural dRle agir (quando você está gripado, toma remédio né?). Então, poder para agir não quer dizer necessidade agir. Ele pode, mas não necessariamente quer agir. Isso é assunto misterioso, da mente de Deus, e nunca saberemos todos os porquês.

PSICOLOGIA ≠ PSICOTERAPIA

Eu sei, eu sei. Você pode estar pensando que essa é uma chatice técnica e pode estar pensando até em parar a leitura. Mas, calma. Isso é importante. Normalmente, quando se critica a prática de se sentar com um especialista em saúde mental com o objetivo de diminuir os sintomas e tentar tratar a causa do problema que está atrapalhando sua vida, os cristãos falam que isso é psicologia. Não, isso não é psicologia. Isso é psicoterapia. A psicologia é muito mais ampla que isso. Veja só, algumas áreas dentro da psicologia além da psicoterapia (psicologia clínica): psicologia jurídica, psicologia do esporte, neuropsicologia, psicologia educacional, psicopedagogia. Nunca vi alguém que critica a “psicologia” criticar a neuropsicologia nos seus argumentos, eles geralmente só atingem a psicoterapia. Todas essas áreas da psicologia são muito interessante e úteis, além de estarem relacionadas a psicologia clínica. Por exemplo, a neuropsicologia nos ajuda a fazer diagnósticos importantíssimos sobre, por exemplo, transtorno do espectro autista ou superdotação. A psicologia jurídica, nos ajuda a tirar o máximo possível de informações verdadeira de vítimas, por exemplo. Todas essas áreas são psicologia, mas estão relacionadas a psicologia clínica (psicoterapia). Mas, de que forma?

PSICOLOGIA OU PSICOLOGIAS?

A psicologia é uma ciência nova. Muito nova. Novíssima. Enquanto a física que reconhecemos hoje como “física” tem uns 500 anos (A biologia e a química também tem aproximadamente essa idade), a psicologia tem menos de 150 anos! Pouco mais de 1/4 dessa idade! Se você vivesse nos tempos de início da física, veria muita, mas muita discussão, sobre temas que hoje todos (ou quase todos) aceitam como verdades fundamentais. Copérnico discutia onde a terra está no universo (se no centro ou não). Galileu também deu origem a uma nova forma de ver a dinâmica (parte da física). Newton nos deu as leis básicas da mecânica. Todos esses tiveram adversários, tão inteligentes quanto eles (ou talvez um pouco menos), que discordavam veementemente de suas teses. Então não é surpresa saber que dentro da psicologia (agora a psicologia mesmo, e não só a psicoterapia), tem algumas divisões em assuntos fundamentais (em termos da filosofia da ciência kuhntiana, não existe ainda uma “paradigma”, estamos numa fase “pré-paradigmática”). Quais assuntos? Assuntos como por que o ser humanos se comporta do modo como se comporta: será que vem do inconsciente (psicanálise) ou vem de uma séries de combinações entre comportamentos e recompensas (ou não; behaviorismo)? ou o que é a mente? ou até que ponto vai a liberdade de comportamento?

Dentro da psicologia hoje existem quatro correntes maiores: análise do comportamento, psicanálise, psicologias humanistas, psicologias transpessoais. Por que é importante saber disso? Por que se um cristão critica a “psicologia”, ele precisa especificar se está criticando todas as correntes ou uma só. As próprias correntes criticam uma as outras, então criticar uma corrente não quer dizer que você está “refutando a psicologia e mostrando como ela é demoníaca”.

Da onde vem as críticas a psicoterapia em união com o cristianismo? Não vou fazer uma introdução completa e gigante, mas basta dizer que os críticos mais ferozes da psicologia dentro do cristianismo são aquelas pessoas adeptas a um TIPO ESPECÍFICO de aconselhamento cristão

O prolífico escritor crítico da psicologia, Jay Adams.

chamado aconselhamento noutético, que tem origens no escritos Jay Adams. Agora: por que alguns criticam a psicologia tão ferozmente? Vou trazer algumas críticas abaixo.

OBJEÇÃO 1: A BASE DA PSICOLOGIA É O ATEÍSMO!

Ok, vamos lá. Primeiro, vamos imaginar que essa objeção esteja correta e que a psicologia seja ateísta em sua base. Isso nos dá base para concluir que “se é ateu, é desprezível e não serve pra nada”? Óbvio que não. É claro que pressupostos metafísicos (facilitando: ideias que a pessoa tem relacionado ao que tem — ou não — além do mundo físico antes de começar a estudar psicoterapia) importam e tem impacto. Quem negou isso? Mas, isso não quer dizer que tudo deve ser jogado no lixo nem que tudo seja inútil. Basta nos lembramos daqueles velha doutrina da graça comum: Deus é tão misericordioso que deu a todos algumas capacidades comuns, dentre elas a inteligência e o aprendizado. Mas, vamos um poquinho mais fundo. Será que a “base da psicologia” (ou melhor, psicoterapia) é ateísta? Depende o que isso quer dizer. Na verdade, esse é um assunto tão amplo que não envolve SÓ a psicologia em si, mas também TODAS as ciências. Sem exceção. A pergunta básica é: deve o religioso levar sua fé para o trabalho científico? Vamos para um caso mais concreto: pode um perito criminal, por exemplo, pensar que quem matou aquele jovenzinho foi um fantasma? o demônio? Deus? O ponto é que não temos resposta para isso. Se houver alguma ela está dentro do campo da filosofia da ciência. Normalmente, os cientistas adotam o famoso naturalismo metodológico, ou seja, de forma simples, mesmo que acredite em Deus o cientista suspende (ou finge que Deus não existe) dentro do laboratório (ou seja, ali todas as causas são só físicas e ponto). Isso é filosofia e não ciência em si. Alguns cristãos concordam com esse princípio outros não. Se por causa desse princípio você rejeita a psicologia, então jogue fora o celular (ou computador) que você está lendo esse texto.

OBJEÇÃO 2: HOJE EM DIA TUDO É ANSIEDADE, DEPRESSÃO, TDAH, SÍNDROME DE NÃO SEI O QUE LÁ….

Concordo em parte com essa crítica. Sim, muitos casos eram vistos e são ainda hoje, como sendo uma coisa, quando na verdade não são nada daquilo e o transtorno é só usado como desculpa para a moral frouxa da pessoa. Isso é verdade! Mas, quem vê assim? Vivemos numa época de internet, em que, dependendo dos sintomas pesquisados no google, você pode se autodiagnosticar de câncer ou de depressão… O maior problema desse “surto” é justamente o autodiagnóstico, não feito por especialista. Segundo ponto é isso: até certo tempo todo mundo que tinha alucinações era chamado de “endemoniado”. Não tinha o nome “esquizofrenia”, por exemplo. Então, é lógico que quando esse diagnóstico surgiu e quando ele foi popularizado o número de esquizofrênicos explodiu. Eles existiam, só não era conhecidos. E isso pode muito bem acontecer com outros transtornos. Isso são coisas a se levar em conta. Mas, é claro que existe um surto (e as vezes por culpa dos próprios espcialistas) de coisas que são ditas ser uma coisa mas são outras, como o famoso caso do TDAH: em certo tempo, qualquer pessoa um pouco apreesniva tinha TDAH. Mas sabe o que é bom? A psicologia como boa ciência se auto criticou, desenvolveu-se e apontou os erros. Toda ciência é assim, pode errar, mas quando erra ela tem o poder de se “auto-medicar”, por assim dizer.

Mas, o ponto principal é: mesmo que muitas pessoas se veem com depressão e não tem, isso quer dizer que depressão não existe? Uma analogia: o fato de muitas pessoas se dizerem cristãs e não serem exclui o fato que existem cristãos de verdade? A resposta é evidente.

OBJEÇÃO 3: PSICOTERAPIA NÃO FUNCIONA!

Bom, nesses 150 anos de psicologia, de uma coisa se tem certeza: a psicoterapia funciona e funciona mesmo. Lógico, psicoterapia não é um remédio que você toma uma vez (ou faz uma sessão) e está “curado” (conceito de cura também é controverso). É um processo, mas um processo que funciona. Centenas de trabalhos comparando psicoterapia com uso de remédios somente, só conversa (sem técnica por trás) ou deixar o tempo passar são unânimes: psicoterapia é eficiente. Claro, assim como tratar totalmente de um câncer depende de vários fatores (estágio do câncer, habilidade do médico, de equipamentos…) tratar feridas emocionais também dependem (conexão com o psicterapeuta, abordagem, qual tipo de problema é e em qual “estágio” está…).

Vou trazer só dos exemplos simples, de inúmeros que existem, dessa eficácia. Qualquer pesquisa no google scholar ou no pubmed mostrará infinitos mais estudos. O primeiro estudo é relacionado à fobia social.

A tabela acima foi modificado desse artigo: Sci-Hub | Meta-analysis of cognitive-behavioral treatments for social phobia. Journal of Behavior Therapy and Experimental Psychiatry, 27(1), 1–9 | 10.1016/0005–7916(95)00058–5. É uma meta-análise. Ou seja, é um artigo escrito por um especialista, que lê todos os artigos disponível até o momento sobre o assunto (nesse caso, 1996) e faz alguma estatística para entender a qual conclusão todos os artigos direcionam. Pois bem, na tabela, a coluna da esquerda tem os modos de tratamento (debaixo de “Condition”): Lista de controle de espera (ou seja, pessoas que estavam não estavam tendo nenhum tipo de tratamento real), placebo (pessoas que recebiam um tratamento “falso”) e debaixo temos vários tipos diferentes de psicoterapias. Na coluna do meio está os resultados dos “tratamentos” sobre os pacientes. E adivinha? Os resultados de pessoas que passaram por psicoterapia são brutalmente melhores. Veja na coluna do meio, a subcoluna “M” (a mais importante para nós): um resultado negativo mostra que as pessoas pioraram (como foi o caso de quem não teve tratamento nenhum), e quanto positivo, mais melhora. Em todos os casos a psicoterapia funcionou melhor que o tratamento “fake”. Para entender melhor os resultados saiba, se o número está perto de 0.2 significa que o resultado não tem muita importância, de 0.5 tem um efeito médio e de 0.8 tem um efeito grande. Os remédios, ainda, potencializam o efeito.

Para finalizar, na depressão também temos resultado parecido:

Nesse caso (The efficacy of short-term psychodynamic psychotherapy for depression: A meta-analysis — ScienceDirec), outro método estatístico foi usado, mas seus resultados podem ser entendidos intuitivamente. Temos na primeira tabela debaixo do título “study name” alguns estudos que falam sobre psicoterapia e depressão. Na última coluna temos um gráfico que mostra qual dos “lados” esses estudos mostraram ser favorecidos (do esquerdo e negativo o grupo controle: aqueles que não passaram por psicoterapia e do direito os que passaram). Fica claro a superioridade da psicoterapia. É bom dizer que a psicoterapia usada nesse caso é a chamada pscioterapia breve, ela é feito normalmente em situações que precisam de rapidez e não é tão eficiente quanto outras mais longa. Usando a estatística do primeiro estudo que coloquei aqui, a superioridade da psicoterapia breve para depressão e os controles é de 0.8 (muito significativo). Abaixo, uma tabela do mesmo estudo mostrando como os clientes se sentiram (mais deprimidos, esquerda ou menos deprimidos esquerda) depois da psicoterapia breve:

(todos os gráficos acima foram adaptados para propósitos didáticos)

O mesmo acontece com outros transtornos, como o stress pós trumático (Comparative Efficacy and Acceptability of Pharmacological, Psychotherapeutic, and Combination Treatments in Adults With Posttraumatic Stress Disorder: A Network Meta-analysis | Psychiatry and Behavioral Health | JAMA Psychiatry | JAMA Network), que aliás, tem superioridade da psicoterapia sobre remédios.

A pergunta que fica (dada a graça comum e a soberania de Deus): por que rejeitar esse presente dado por Deus?

A continuação fica para a parte 2

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Derek Kempa

Não sou nada mais que um pecador, buscando ter comunhão com o Deus vivo. Oh! Quanta misericórdia e graça de Deus!